Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

quarta-feira, 12 de agosto de 2015

Leitura com febre


Aos 11 de Agosto de 2015, releio contos do Le Clézio, um digno Nobel da Literatura. A história que dá nome ao livro é “A Febre” e centra-se sobretudo na ideia de que estamos (sempre) a morrer, a caminho da degradação e do Nada. Já me esquecera do facto de ter recebido este volume, no longínquo ano de 2009 (!), directamente das mãos do meu Amigo Conceição. Na página 3, há quatro linhas manuscritas - “Coimbra 2009 / Para o Joaquim “Poeta” / Do Amigo / Conceição”. Ele morreu no ano passado, a 8 de Julho. Dói-me muito que ele não esteja aqui. Nunca apaguei da minha lista o seu número de telemóvel. E, regressando a Le Clézio, tudo bate certo, afinal, sendo certo (infelizmente) o mesmo que trágico.

PS: À minha frente, antes desse consabido fim a haver, está o belo mar da Tocha. Ora, o Presente é ainda, visto daqui, um presente!

Praia da Tochas, 11 de Agosto de 2015.

Joaquim Jorge Carvalho

sábado, 8 de agosto de 2015

Devolução da infância (quadra ao jeito popular)


Fui à praia da Tocha e fabriquei, quase sem pensar, uma quadrinha sobre um reencontro muito adiado. No regresso, vim a cantá-la no carro com a música de "Samaritana", esse antiquíssimo fado de Coimbra. La voilà:

Levei à praia a velhice
E a praia por eu lá estar
Devolveu-me a meninice
Em forma de areia e mar.

Tocha, 07 de Agosto de 2015.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://rotadabairrada.pt.]

quinta-feira, 6 de agosto de 2015

ZONA DE PERECÍVEIS (2)

Parábola da urgência

Há aquele tempo em que nos sentimos imortais, não é? Acordamos, todos os dias, para um novo dia, e nenhum dia é o último. Outorgamo-nos secretamente o direito à permanência ilimitada. Habitamos nada menos que a plenitude. Acreditamos que nenhum dia é repetido, embora – se o quisermos – tudo seja repetível. E, não obstante o vago susto de algumas mortes (ou migrações semelhantes), nem sequer desconfiamos da cínica verdade que nos governa – a de o tempo ser emprestado, de vivermos a prazo.
Cruzei-me há dias com um amigo antigo. Daqueles dois ou três que, com sorte, nos é dado descobrir em cinquenta anos. Há uns seis meses que não o via. Cumprimentei-o de fugida, porque tinha pressa (questões de mercearia ligadas a carro e casa). Mas prometi-lhe um telefonema “em breve”. À noite, recordando aquele encontro desperdiçado, uma vaga neura de remorso ensombrou-me o jantar.
Num dominó de lembranças, viajei até àquele dia em que não telefonei ao meu Pai, incumprindo a promessa feita, e depois até àquele domingo em que ele não atendeu a minha chamada, e depois até àquela manhã de sábado em que o Emanuel (meu irmão) me telefonou e disse, “O Pai morreu”, chorando como um menino.
Viajei também até àquele mês de Maio de 2010, quando telefonei para o meu sogro, o Mestre João (dito “Mestre” em atenção, antes de mais, à sua carreira na construção civil, depois em reconhecimento da sua faiscante sabedoria) e o informei do nosso encontro a haver, muito em breve, na Madeira. Sabendo-o doente, eu vencera o medo de andar de avião e decidira, nesse ano, acompanhar a minha mulher na viagem à sua ilha natal. O Mestre João gargalhou, feliz com a notícia, mas quis logo saber a data exacta da nossa chegada. Disse-lha: 29 de Julho. Após uns segundos, ouvi-o murmurar em tom preocupado: “Não sei se lá chego…” Ralhei com ele: que diabo de pessimismo, logo ele que era um homem forte, ainda haveríamos de nos encontrar muitas vezes, etc.
A meio de Junho, o meu sogro foi internado. A sua saúde esvaziava-se como um balão cansado. Temendo o pior, a minha mulher foi para a Madeira mais cedo. Dela fui sabendo que o Mestre João piorara, melhorara, piorara de novo, e que deixara de comunicar com o mundo, e que respirava por uma máscara, e que, enfim, por ali jazia sem esperança. Cheguei à ilha, como previsto, a 29 de Julho. Só no dia seguinte o vi, finalmente, num pequeno quarto do Hospital Nélio Mendonça onde havia três camas (uma delas ainda – ou já - vazia). A minha mulher acariciou-lhe as mãos e o rosto, passou-lhe um pano húmido pelos lábios muito secos, falou com ele (como se ele a pudesse ouvir), disse-lhe que eu já chegara. Mantive sempre um cobarde silêncio, não conseguindo senão olhar fixamente para aquele apagamento do Mestre amigo. Ele resfolegava, como um atleta correndo para a meta (ou então como alguém fugindo de um perigo próximo e mortal). À saída, garanti à família toda, sem convicção: “Ele ainda acorda, vão ver!”
Nessa mesma tarde, enquanto dolentemente caminhávamos por Machico, rente ao mar, o telefone tocou e a minha cunhada disse: “Morreu.” Com a idade (aí vai um clichê), aprendemos a distinguir o essencial do acessório. A perceber o que Eugénio de Andrade quis dizer com isso de ser “urgente o amor”. Ou por que razão Alexandre O’Neill queria abraçar-se à sua (pontual) amada “contra a morte”. 
O final desta crónica sou eu a conversar, ainda ontem, num Café familiar em Coimbra, com o meu amigo Rui Candeias, à vista de cerveja e de tremoços sobre a mesa, reflectindo-resmungando-rindo. Sem pressas, notai, porque era urgente estarmos ali.

Coimbra, 04 de Agosto de 2015.
Joaquim Jorge Carvalho
[Crónica publicada no semanário O RIBATEJO, edição de 06 de Agosto de 2015.]



ZONA DE PERECÍVEIS (1)

O valor da metáfora
A metáfora, como eu a entendo, é a cósmica tentativa de articular a verdade com o verbo humano. Radica numa espécie de consciência do défice da linguagem normal, e na concomitante necessidade (urgência até) de criar modos de dizer o que, existindo, não se explica facilmente, normalmente. Um dia, em viagem de automóvel, à conversa com a minha filha, percebi isto muito bem.
Ela tinha, então, quatro anos. Íamos buscar a minha mulher, que trabalhava a quarenta quilómetros da nossa residência. Para entreter a monotonia das rectas, eu ia falando, contando histórias, questionando-a. A miúda respondia com a simplicidade (de modos e de vocabulário) que a sua pouca idade explica. A certa altura, perguntei-lhe se gostava de mim.
Ela respondeu: «Gosto.»
Perguntei-lhe se também gostava da mãe. Ela disse: «Também.»
Levantei a fasquia da dificuldade e perguntei-lhe se gostava mais da mãe ou do pai. A miúda levou mais tempo a responder, mas desenrascou-se bem: «Gosto dos dois.»
Prossegui a entrevista, complexificando a conversa, já talvez adivinhando a sua desistência iminente: «Quanto é que gostas de mim?»
Ela, cada vez mais embaraçada, foi ainda capaz de se exprimir: «Muito.»
Temi pela minha filha, tão à beira de um esgotamento lexical, mas arrisquei ainda: «Muito, quanto?»
Caiu então um mui espaçado silêncio sobre a noite. A menina decerto sentia a resposta, mas não havia (em seu pobre vocabulário de infante) palavras para dizer o que inteiramente sentia. 
E nós passávamos enfim por Cantanhede, a caminho da vila de Febres, quando ela, interrompendo silêncio e breu, apontou para o maior edifício à vista e exclamou: «Gosto de ti aquela casa toda!»
Entendeis? A minha filha tinha descoberto a metáfora e oferecera-ma.

ADENDA
Inicio, com honra e gosto, uma colaboração com O Ribatejo. Chego aqui pela mão do Daniel Abrunheiro, cronista deste jornal, meu amigo e, na minha opinião, o mais importante poeta do século XXI. Agradeço ao senhor Director de O Ribatejo a confiança em mim depositada e faço questão de saudar os (desprevenidos) leitores, apresentando-me de modo sucinto: nasci em Coimbra há 52 anos, sou professor, vivo em Ribeira de Pena (Trás-os-Montes). Ando desde menino à porrada com o Tempo. Sofro exageradamente de saudades: do mar, do 25 de Abril, da minha rua coimbrinha com árvores, do futuro, da gente que traiçoeiramente me tem falecido. Hei-de, aliás, falar-vos disto neste espaço, em escritos – se os houver – a haver. Já agora: descobri a expressão “Zona de Perecíveis” numa placa de certo hipermercado em Vila Real, no meio de legumes e frutos muito fresco-coloridos. Cheirava intensamente a morangos em promoção. Achei logo que o nome naquela placa seria o indicado para um espaço de crónica jornalística ou para um livro de poemas. Ou seja, digo eu, para falarmos, à sombra da expressão, da nossa mortalidade imortal. Agora já sabem: se passarem por esta zona, encontramo-nos.

Ribeira de Pena, 28 de Julho de 2015.
Joaquim Jorge Carvalho
[Nota: Esa crónica, a primeira que envio para o semanário O RIBATEJO, parte de uma anterior que publiquei em "Muito Mar" no ano de 2010.]