Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

sábado, 25 de abril de 2015

25 de Abril (com maiúscula)


Agora escrevem Abril com minúscula. É uma coisa ortográfica, na aparência, mas eu desconfio que seja mais do que isso.
Por mim, não consigo escrever 25 de Abril de 1974 sem a maiúscula que a palavra merece. Porque, sabei, há 41 anos eu habitei, com outros desse tempo limpo e lindo, o país da esperança e da liberdade. Gritei, junto a meu Pai, "Morte à Pide!", ali mesmo às portas do edifício-sede dessa polícia (que viria a ser, depois, sede da Direção Regional de Educação do Centro). Assisti ao recenseamento eleitoral da minha rua, na sala da minha escola primária. Ouvi, na escola da Mata e em Eiras, no dia das eleições enfim democráticas, gente de todos os partidos a cantar "Somos livres, somos livres, não voltaremos atrás!". Admirei Salgueiro Maia como se ele fosse um herói de cinema. Li Soeiro Pereira Gomes, Sophia, Manuel Alegre, Sttau Monteiro. Decorei canções de Zeca e Sérgio Godinho. Chamei fascistas aos árbitros que prejudicavam o União de Coimbra ou o Sporting Clube de Portugal. Fui formosamente optimista, ingénuo, feliz.
Gosto que a minha filha goste do 25 de Abril como eu. E lamento muito, por outro lado, que o espírito lindo e limpo daquela revolução se tenha tornado, entretanto, tão distante e fugidio. Tão aquém do futuro que ela merecia (que a juventude inteira merecia). Ela sabe que Abril valeu e vale a pena. Mas também sabe, como eu, que ficou por cumprir muito (tanto) desse sonho honesto de liberdade e de justiça.
Encenei há uns anos a peça "A Noite", de Saramago, com adaptação minha. A imagem que aqui acompanha este texto é do meu amigo Manuel Vilela e foi desenhada para ilustrar o cartaz do espectáculo. Sirvo-me desta memória em forma de desenho para recordar esse momento de teatro - e, evidentemente, a mensagem fundamental que ali, então, perseguimos. Deixai que vo-la lembre: a Noite aconteceu; a Noite acontece. O Dia fez-se; o Dia faz-se.

25 de Abril sempre!

Ribeira de Pena, 25 de Abril de 2015.
Joaquim Jorge Carvalho

sexta-feira, 24 de abril de 2015

Fogo



Convidou-a para um cineminha vespertino e ela aceitou. Viram um filme (talvez sueco ou norueguês) sobre a vida na pré-história. Mais ou menos a meio, uma tribo festejava o nascimento do fogo, produto mágico da fricção persistente de um graveto em outro graveto. Ele serenamente sorriu, por essa altura. Porque uns bons dez minutos antes, quando o seu joelho tocara no dela (ou o joelho dela tocara no dele), um fogo muito maior se lhe acendera já.

Ribeira de Pena, 22 de Abril de 2015.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.gcn.net.br.]

sexta-feira, 10 de abril de 2015

Carla


Em 1976, eu era um jovem rapaz cheio de excessos: de juventude, de energia, de sonhos, de paixão.
Havia uma rapariga mais velha do que eu no prédio da minha juventude, uma morena elegante e eléctrica, sempre sorridente. Talvez alguns dos meus primeiros exercícios líricos fossem dedicados a essa vizinha do primeiro andar, a qual decerto mal repararia neste enlevo profundo e breve.
Depois houve o Tempo, esse tractor cínico que atropela e esmaga fantasias, beleza, ilusões. A rapariga cresceu e, para todos nós, seus contemporâneos, a vida veio a ser muito menos amável do que, à luz dos nossos corações frágeis e puros, parecia destinada a ser.
Soube agora que a Carla morreu de doença. Lamento-o muito, muito. E não sei reagir à brutalidade do fim senão com o recurso - patético, quiçá - ao ancinho da memória, resgatando no quase deserto das lembranças alguns pedaços de vida. Nacos (datados) de sonho. Bocadinhos (falecidos) de horizonte. Hipóteses (nunca completamente cumpridas) de felicidade.
Que descanse em paz.

Arco, 10 de Abril de 2015.
Joaquim Jorge Carvalho
[A ilustração lembra o mito de Sísifo. Não me ocorre agora, infelizmente, melhor representação da vida humana.]

quarta-feira, 8 de abril de 2015

Impressões do cemitério (com parênteses metalinguístico)


Vou com a irmã ao cemitério
Da Pedrulha.
Anda agora, penso, o meu Amigo
(marido da minha pobre irmã)
Estava tão evidentemente vivo!
Reconheço outros vivos,
Entretanto:
Assim observo a horizontal mudez
De ainda agora contemporâneos
Do que sou.
Falta-me partir
Para o meu tempo ser igual
Ao de toda a gente.
(A escrita, atenção, já tem algo de horizontal.)

Coimbra, 09 de Março de 2015.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.pt.wallpapers.com.]

Lições de música (re-visões)


1.
Antes do amor, não tem a vida
Música.
Não o sabem muitos. Às vezes,
Os ausentes do amor desconhecem até
A música que pode haver
Nos dias.

2.
A novidade da música encanta
Como bênção.
Muitos acrescentam ao prazer da escuta
O próprio canto.
Há os que têm de aprender a cantar
Até o seu canto ser verdadeiramente música.

3.
Depois de se conhecer o amor, ninguém
Sequer concebe a vida sem essa música.
A ausência da música nota-se muito
E dói.

Cabeceiras de Basto, 09 de Abril de 2015.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem reproduz um cartaz do filme Shakespeare in Love (1998), de John Madden.]

domingo, 5 de abril de 2015

Coimbra eterna


Tenho algum receio quando, longe de Coimbra, falo do amor que sinto pela minha terra natal. Há sempre esse perigo antigo de confundirem a nossa sinceridade com alguma expressão de desprezo ou indiferença pelos lugares (e gentes) para onde a profissão me levou, me leva. Mas não há remédio para esta alegria inconfundível de passar por lugares que são o nosso habitat verdadeiro e certo: ruas, árvores, pessoas, casas, monumentos, cafés, pastelarias, padarias, oficinas, livrarias, fábricas, luminosidades, sons, cheiros. Por cima disto tudo, abarcando tudo como uma memória mítica, a minha querida Mãe.
Coimbra é a minha casa. Todos os dias fora deste paraíso original são intervalos entre durar e ser. Nada contra outros lugares amáveis e amáveis gentes. Mas sou daqui.
De modo que, se me virem chorar, seja onde for, tomai essa evidência líquida como pedaços de Mondego descendo do cérebro para o coração. Que eu sei bem o que digo e sinto muito o que digo.

Coimbra, 04 de Abril de 2015.
Joaquim Jorge Carvalho
[A foto é da VL, num lindo Café, contíguo ao Museu Machado de Castro, o Loggia.]

sexta-feira, 3 de abril de 2015

ANIKI-BOBÓ, por Manuel António Pina


Fui finalista no Concurso Textos de Amor Manuel António Pina (edição de 2014), iniciativa patrocinada pelo Museu Nacional de Imprensa - e atribuíram-me uma menção honrosa pelo meu poeminha de seis versos "Astronomia". Via CTT, na qualidade de prémio material, chegou-me entretanto um conjunto maravilhoso de livros: Sinfonia Completa, de Manuela Azevedo (um muito interessante volume de pequenos contos, com uma poética cheia de vida & morte); Porto Cartoon - World Festival (uma delícia de palavras e imagens, com excelente humor e notável profundidade humanista); e - sobretudo - um magnífico ensaio sobre a obra de Manoel Oliveira, centrado em especial no filme Aniki-Bobó, da autoria do (in)finito Manuel António Pina.
De modo que, para além de Vargas Llosa e dos meus recorrentes Vilhenas, houve espaço para leitura bastante variada e nutritiva. Obrigado aos que me desejaram "Boa Páscoa"; os votos resultaram.
Há evidentemente esta coincidência terrível de, à hora em que acabava de ler o ensaio de Pina, ter morrido aquele realizador centenário que atravessou um século a fabricar mundos. Que estranho é o sentido de humor dos deuses!
Entre muitas pérolas que retive do texto de Manuel António Pina, ficou-me esta da noção de "clássico", que o autor foi beber (e glosar) a Italo Calvino, em Porquê ler os clássicos:
"[É a obra] que tiver tendência para relegar a actualidade  (para a categoria de ruído de fundo, mas ao mesmo tempo não puder passar sem esse ruído de fundo". 
Amen.

Coimbra, 02 de Abril de 2015.
Joaquim Jorge Carvalho
[A ilustração reproduz a capa do livro Aniki-Bobó, de Manuel António Pina, Porto, Ed. Assírio & Alvim,/Porto Editora,  2012.]