Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

domingo, 17 de agosto de 2014

Baía


A baía de Machico tem, quase sempre, a forma de um abraço. O mar aninha-se nela como uma criança grande que regressa a casa. Às vezes, a rebentação marítima redesenha a costa - e o que era harmonia afigura-se uma briga de amantes caprichosos.
O amor tem marés.

Machico, 16 de Agosto de 2014.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em Madeiras - Gentes & Lugares.]

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Saudades do senhor Luís


Faleceu o senhor Luís Monteiro, marido da senhora Dona Lurdes Monteiro, pai da Ju e da Alexandra, vizinho e amigo da minha família. Soube-o hoje à tarde pelas lágrimas telefonadas da minha mãe. Eu, a MP e a VL ficámos profundamente tristes. Que pena tenha por, estando a um oceano de distância, não poder prestar-lhe uma última homenagem no funeral...
Hei-de, claro, logo que possível, falar com a sua família. E não me esquecerei nunca nunca nunca do senhor Luís vivo, esse ser elegante e correcto que atravessou, desde a infância, a minha vida mais pura. Até sempre, senhor Luís!

Machico, 15 de Agosto de 2014.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.meioambienteculturamix.com.]

Machico - liturgia do 1.º dia


Um homem procura, no chão da marginal, com o auxílio de um aparelho semelhante a uma bengala, objectos de metal que valham, talvez, o esforço da procura. A minha vida toda ali.

Uma funcionária limpa, com uma vassoura, cheia de paciência e de rigor, o lixo que a humanidade e a natureza produziram no dia anterior. A minha vida toda ali.

Um velho corre desajeitadamente atrás de um carro, gritando "Estou aqui!", desesperando por não o verem e perder a boleia.  A minha vida toda ali.

Um menino passa alegremente de bicicleta, metido num mundo muito próprio e muito secreto, feliz como um pássaro. A minha vida toda ali.

Uma senhora de idade indefinida sai da igreja com um suspiro nos olhos, quem sabe viajante entre o Visível e o Ausente que consabidamente há nas saudades. A minha vida toda ali.

Um homem contempla o mar, à procura de razões para seguir em frente. Cá estou. A minha vida toda aqui.

Machico, 15 de Agosto de 2014.
Joaquim Jorge Carvalho
[O título do texto teve a colaboração do meu Amigo Daniel Abrunheiro, que sugeriu o termo "liturgia". A imagem foi colhida em http://wwwffotos2.blogs.sapo.pt..]

quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Moinho Velho, ao Arnado

Ando por Coimbra feliz e leve como uma criança conduzindo um carrinho de choques na pista da feira popular. Divirto-me da forma mais pura, mais simples, mais próxima do menino que, em 1973, metia a ficha na viatura número 14 e driblava o trânsito colorido. "Nova corrida, nova viagem", ouvia-se entre cada aventura - e lá estavam, na curva certa, o meu pai e a minha mãe debitando conselhos e sorrindo, parecendo ali (como eu) alegres e imorredoiros.
Agora, à razão de alguns euros de gasóleo por dia, vou  levar e buscar a VL ao emprego (ela falou ontem na televisão, ena!), vou levar e buscar o A ao treino, ajudo a F a tratar das suas formalidades viúvas, faço compras, passeio com a MP, dou (sozinho) um salto a certo Café tranquilo, perto de casa, para sumo e literatura.
Gosto estranhamente deste ofício de motorista quase livre. Isto é, gosto desta condição de formiguinha urbana, que é feliz apenas por pertencer à cidade também sua. E quem me dera nunca sair desta rotina amada! Quem me dera ficar para sempre nesta paisagem conhecida, cheia de lugares pessoais, carregada de memórias e sentidos absolutamente meus (irreproduzíveis, é verdade, noutras geografias)!
Hoje, entre as dez e meia e o meio-dia, li um livro de Prosper Mérimée, extraordinário escritor francês do século XIX. Fi-lo num Café coimbrinha, junto a uma parede de vidro transparente que oferecia, à minha atenção irregular, o espectáculo da cidade viva, com gente e carros passando, em ritmo apressado ou vagaroso, rumo aos pontuais destinos de cada circunstância transeunte.
No livro de Mérimée, encontrei contos que relatavam lutas militares, intrigas de amor e ciúme, sonhos e frustrações, episódios épicos e pícaros, drama e humor. E era como se na leitura, feita no lado de cá, estivesse afinal o recheio humano do que, para lá do vidro do Café, eu ia vendo.
Creio que toda a vida tenho estado junto a uma parede assim. Uma parede de vidro transparente (mas às vezes, translúcido; mas às vezes, opaco) que, em vez de separar dimensões, une.

Coimbra, 13 de Agosto de 2014.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (foto do Café referido no texto) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.mogumogumunch.wordpress.com.] 

Estrada bela


Calha eu cansar-me, com certeza,
Se é maior o desejo que o ensejo!
Nunca me canso é da beleza
Que adivinho ou sinto ou vejo -

Triste seria, ó camarada,
Não haver beleza
(Não ver, sentir, adivinhar beleza).
Que deserto seria a estrada!
Que tristeza!

Coimbra, 12 de Agosto de 2014.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.zazzle.pt.]

Cão & Cadela



O meu primeiro cão morreu atropelado
E eu lembro aquele choro do Zé-Tó
(Irmão do menino que eu então era).

Decidi que cães nunca mais –
Só porque a minha filha me pediu tanto
É que tenho, hoje, esta cadela terminal
(Chamada Dara)
Morrendo de esclerose no inverno cego.

Porque é muito triste amar
(Como Sophia ensinou, por outras palavras)
Quem dura tão menos do que o nosso amor.

Coimbra, 13 de Agosto de 2014.
Joaquim Jorge Carvalho
[Este poema é o último de um volume a que chamei Escrever Sobre Não Estares (2010). A imagem é da falecida Dara, que esteve na nossa família até há cerca de quatro anos.]

Agostinho & cão

 

Para onde pedalas, Joaquim Agostinho
Em mil novecentos e setenta e dois
Entre o túnel da Estação Velha e a Figueira da Foz?
Tu hás-de morrer no Algarve
Depois de um cão te atrapalhar o destino
E eu hei-de escrever sobre não estares.

Para onde pedalam os meus versos,
Campeão?

Coimbra, 13 de Agosto de 2014.
Joaquim Jorge Carvalho
[Este poema faz parte de um volume a que chamei Escrever Sobre Não Estares (2010). A primeira imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.geopedrados.blospot.com; a segunda foi colhida, com a devida vénia, em http://www.torrresvedrasweb.com.]



Soldado Luís


Talvez houvesse quatro a zero, na segunda parte
E eu, aos treze anos, como um deus
Fosse o tetra-marcador do farto treino;
Talvez nos meus pés nascesse a arte
De, então, ser o melhor dos meus
Natural reizinho desse reino.

Mas depois tudo parou para ver da estrada
O cortejo do soldado do Ralis
E a tarde ali morreu tão empatada
Tão perto de eu chegar a ser feliz –

O nosso treinador, o Belchior
(Democrata só de Abril devindo)
Notou a noite, em vez do meu suor
Caindo.

Coimbra, 13 de Agosto de 2014.
Joaquim Jorge Carvalho
[Este poema faz arte de um volume a que chamei Escrever Sobre Não Estares (2010). A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.nucleodeestudo25deabril.blogspot.com.]

Abril


Na noite da revolução dos cravos
O meu pai levou-me àquela rua
Onde milhares diziam morte aos pides
E faziam capotar os automóveis.

O meu pai era bate-chapas, gostava de carros
E fez a pergunta reaccionária: Porquê
Que culpa têm os carros?

Um homem (Belchior talvez, impaciente)
Gritou, com o punho ao alto, como flor
Porque sim, senhor.
Porque ali viajou muito inocente.

Eu fiquei com a frase e o punho zunindo
No meu coração de menino amante
Das coisas formosas.
Viva a revolução, quis dizer, mas meu pai
Encolheu os ombros e fez contas às amolgadelas
(Visíveis e invisíveis)
Do nosso furor colectivo.

Coimbra, 13 de Agosto de 2014.
Joaquim Jorge Carvalho
[Este poema faz parte de um volume a que chamei Escrever Sobre Não Estares (2010). A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.pplware.sapo.pt.]

Taça de Portugal


Fugiu à história da guerra colonial
Um príncipe preto chamado Dinis;
Marcou, em 73, numa final
E eu fui feliz.

Depois Eusébio chutou contra mim
E perdeu-se a partida.
Foi, eu vos digo, sempre assim
A minha vida.

[Este poema faz parte de um volume a que chamei Escrever Sobre Não Estares (2010). A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.tesouroverde.blogspot.com.]

Salazar


Morreu o homem, disse a vizinha
E a mãe benzeu-se por obrigação.
Fomos à Estação, pela tardinha
Acenar adeuses ao caixão.

A multidão, vista de hoje, era um casal
(Meu pai e minha mãe, muito formosos)
E eu tão eterno e jovial
Tão longe de discursos desgostosos.

Um ébrio muito velho, pobrezinho
Disse é só paleio, é só paleio
O pai ensinou-me que era o vinho
E, depois, a polícia veio.

Tanto barulho, ali, tanto calor
Tanta gente para dizer adeus a um morto -
E eu sozinho dizendo daqui adeus
Àquela  tarde.

Coimbra, 13 de Agosto de 2014.
Joaquim Jorge Carvalho
[Este poema faz parte de um volume a que chamei Escrever Sobre Não Estares (2010). A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.sabado.pt.]

Senhora Professora


I

A senhora gritava a aritmética e a ortografia;
Antes do recreio era uma noite muito grande
Nos corações (nus corações) de nós
Silentes
À mercê da régua agressora oficialmente ninguém.

Mas depois havia duas árvores na baliza de cima
E duas pedras na de baixo, com golos
Entre sul e norte
E o suor de oiro nos arredores do drible
Ou do falhanço.
Eu corria à velocidade de uma carreira internacional
E à noite, perante a multidão
(Sonhando ou não)
Agradecia à rua e a Portugal.



II

O recomeço da escola era uma ferida feia
Interrompendo a infância e a bondade do sol.


III

Naquela tarde era o dia em que naquela noite
Falaria o senhor Marcelo, presidente do Conselho
(Depois do Bonanza e das notícias)
E a senhora professora adormeceria a ouvir a continuidade
Do regime
Da sua velhice amargurada.



IV

Vinte valores pela redacção A amizade, eia!
Vem, orgulhosa, a minha mãe à escola
E o pai sorri já nobreoperariamente a ver
Aquele provável brilho que eu haveria de ser.
A redacção contava a queda do Jaimito
(Entre o quadro e a carteira, no sobrado)
Mais o nosso socorro muito aflito
(E só depois o riso disfarçado).

Éramos tão amanhã, tão prestes a ser
Tanta coisa tão distinta de haver morte
Que vistos de agora, ao entardecer,
Parece que de nós fugiu a sorte.

Coimbra, 13 de Agosto de 2014.
Joaquim Jorge Carvalho
[Estes poemas fazem parte de um volume a que chamei Escrever Sobre Não Estares (2010). A imagem (recordando o Petit Nicolas) foi colhida, com a devida vénia, em http:/www.mesterressaintes.hautelfort.com.]

Menina


Saíam-me os olhos da aula de História
Cada vez que a menina do 5.º B chegava
Ao meu dia, quase sempre de manhã
Como se o verbo ver nascesse ali de ela existir.

Está distraído, menino, olhe o teste
(Depois não diga que não estudou a matéria)-

Então eu regressava à cartografia do papel
À ínclita, de Gama, caravela
Mas a minha Índia era maior que D. Manuel
Era ela.

Coimbra, 13 de Agosto de 2014.
Joaquim Jorge Carvalho
[Este poema faz parte de um volume a que chamei Escrever Sobre Não Estares (2010). A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.afelicidadeafinalexiste.blogspot.com.]

terça-feira, 12 de agosto de 2014

Contrato vital



Tenho um acordo tácito com o Tempo, esse bicho devorador do presente: ele faz de conta que é meu - e eu sou, sem fingimento nem remédio, dele. 
Uso a memória para ter a ilusão de não perder nada. Lembro-me, revivo. Ainda no domingo passado revisitei, na praia de Buarcos, quase toda a minha vida essencial.
Sofro às vezes, claro, por sentir escapar-se-me, por entre os dedos envelhecidos, a areia linda da minha existência. 

Coimbra, 12 de Agosto de 2014.
Joaquim Jorge Carvalho
[Na imagem, tenho nos braços a minha filha VL e o meu sobrinho RS. Éramos todos, à época, imortais.]

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Loira



Frente à barraquinha de Setembro
Sob um toldo verde, marca Nívea
Havia uma família que hoje lembro
Como o meu baptismo de lascívia.

O chefe deste toldo, novo ainda
Usava um bigode doutoral
E tinha uma esposa muito linda
Que eu via passear no areal.

A filha era uma loira de encantar
Cheia de oceanos no olhar
Que então me roubou sossego e sono;

Em versos que rimavam com luar
Propus-lhe imortais modos de amar

E ela amou-me até vir o Outono.

Coimbra, 06 de Agosto de 2014.
Joaquim Jorge Carvalho
Este poema faz parte de um volume a que chamei Escrever sobre não estares (2010). A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.]

Dia de Finados


Hoje é dia de finados.
Compro flores, levo-as, deposito-as
Nesse mármore superficial da lisa morte.
Fica por segundos o cheiro a rosas brancas
Mas depois regressa o nada que há
Nas coisas depois de morrerem.

Coimbra, 06 de Agosto de 2014.
Joaquim Jorge Carvalho
[Este poema faz parte de um volume a que chamei Escrever sobre não estares (2010). A imagem (rosto do grande Pessoa) foi colhida, com a devida vénia, em http://canalgama.com.]

Quarto & Versos


Há poetas, mãezinha, que me explicam
O teu ar grisalho, a tua desesperança
O fim da tia Rosário (e do pai, e de nós todos).

Eu, antes de saber que havia fim, não percebera
O ouro desses versos, a humanidade
Tão funda e tão vizinha que há
(Que pode haver)
Entre a coisa lida
E a nossa vida.

É preciso viver, mãezita,
Para perceber a fundo
A escrita

O mundo.

Coimbra, 06 de Agosto de 2014.
Joaquim Jorge Carvalho
[Este poema faz parte de um volume a que chamei Escrever sobre não estares (2010). A imagem (rosto do grande Pessoa) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.dn.pt.]

Quarto & Fotografias (Seis Poemas)


I

Uma fotografia está colada nas costas da porta:
Meu pai, minha mãe, a tia Rosário, o primo José e eu.
Vejo o meu pai ali muito vivo e rindo
De alguma piada do, então, presente.
Ao lado, havia, há anos, a praia
Mas uma nódoa de café com leite apagou o mar.
Ficou só o meu pai sorrindo
Sem poder navegar.


II

O meu pai cansava-se de estar na praia
Sem nada para fazer.
Olhar para o mar deprimia-o
E ele escapulia-se destas tardes para o Café do Jorge
Para seduzir ou rever balzaquianas avulsas.
 A minha mãe suspirava então em frente ao mar
E de tão ocupada nesta espécie de viuvez nem notava
A minha felicidade e o meu silêncio inteiro.
 Mãe, eu também sabia da dor seguinte à alegria
Mas havia aquele presente e eu não podia não ser novo.



III

No retrato está depois a minha mãe
Nova como a Loren do cinema e das revistas antigas.
Hoje está coberta de tempo e colecciona
Doenças da idade.
Que posso eu fazer senão amá-la cada vez melhor
E comprar-lhe (uma ou duas vezes por mês)
Um champô anti-queda que adie
Ou iluda
A calvície traiçoeira?


IV 

A tia Rosário embala o José a preto e branco.
Foi ela que me ensinou, há muito tempo,
Sobre o tempo,
Que era uma coisa que encarquilhava a pele.
Morreu depois e eu só então soube a verdade:
O que encarquilha, tia, é o coração.


V

Também o José partiu tão demasiado cedo
E eu agora só consigo recordar-me do seu riso
Muito limpo.
Enquanto eu me lembro e ele se ri
Não há morte.


VI

O meu lugar na foto é um menino na escola
E naquele tempo tinha muitos dentes brancos.
Mas o tempo é, sublinho, um tractor traiçoeiro
Que despedaça os nossos corações de vidro:
Veio portanto a gordura e foram-se
(Um a um, meio a meio, pedaço a pedaço)
Os dentes que antes sorriam, confiantes,
Para amanhã.
O poeta às vezes é isso, um sorriso desdentado
Que ama o mundo e afugenta o mundo;
O mundo não entende o seu amor tão especial
E a ele dói-lhe muito a repugnância mundanal.

Coimbra, 06 de Agosto de 2014.
Joaquim Jorge Carvalho
[Estes seis poemas fazem parte de um volume a que chamei Escrever sobe não estares (2010). A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.br-pixersize.com.]

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Quarto & bicicleta

Não tive, em criança, triciclos
E sobrevivi ao acne sem motorizadas.
O único veículo da minha juventude foi
Uma bicicleta.
Aprendi caindo a guiar sem cair –
O pai dizia Faz-te gente, rapaz
E eu fiz-me gente e o pai
Morreu.
A bicicleta, hoje, tem ferrugem
E não tem corrente:
Está suspensa de um prego na parede
Da despensa
Como um quadro antigo na parede
Do meu coração.

Coimbra, 06 de Agosto de 2014.
Joaquim Jorge Carvalho
[Este poema faz parte de um volume a que chamei Escrever sobe não estares (2010). A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.delgadohumberto.blogspot.com.]

Quarto & Aranha



O quarto onde eu dormia em criança
Está vazio por motivo de obras:
A minha mãe decidiu que era hora
De geral pintura das paredes.
Está o quarto vazio também de mim
E eu tão cheio dele e do que nele havia
Em minha meninice – de futuro e de sonhos
E de solidão boa (no intervalo do ruído do mundo).


Descobrimos subitamente, no quarto, uma aranha
Actual, mas talvez trineta de uma outra antiga
Que há quarenta anos, ali mesmo, me assustou
Atravessando a suspensa distância entre a lâmpada
E a única janela do quarto:
Entre a luz da EDP e a luz do sol.


A minha mãe tem o horror de aranhas
E mata aquela com o seco chinelo…
Eu fico a olhar a inútil teia sem inquilino

Deste preciso lugar onde era menino. 

Coimbra, 06 de Agosto de 2014.
Joaquim Jorge Carvalho
[Este poema faz parte de um volume a que chamei Escrever sobre não estares (2010). A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.adesobertaguiada.blogspot.com.]