Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

quarta-feira, 26 de março de 2014

Mar que falta


Acontece-me, às vezes, sofrer da falta de mar.
Olho em volta e vejo muita beleza, é verdade: montanhas como corpos espreguiçando-se, árvores posando como dançarinas do meu caminho, algum rio correndo como se adivinhasse o que sinto. Mas falta o mar. Mas falta aquele horizonte mais belo de todos. Mas falta esse amor misterioso e constante que me acompanha desde que me lembro de o ver.
Porque a minha vida verdadeira começou na praia de Mira, num tempo em que eu era imortal. Naquele dia em que, à minha frente, surgiu aquele felino lindo e poderoso. Mar de Mira. Mar para sempre rumo. Mar para sempre destino.
Fazes-me falta.

Ribeira de Pena, 26 de Março de 2014.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (querida praia de Mira) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.soudagandara.blogspot,pt.]

quarta-feira, 19 de março de 2014

Pai



O meu pai não era perfeito. Nem tudo quanto fez, enquanto vivo, foi bem feito.
Agora, que ido está, que faz ele?
Faz-me falta.

Ribeira de Pena, 19 de Março de 2014.
Joaquim Jorge Carvalho

[A imagem é de um maravilhoso filho de Luís Filipe Rocha, Adeus, Pai, que vi ao pé da minha amadíssima filha, no Salão de Bombeiros de Ribeira de Pena, já lá vão uns dezassete anos.]

segunda-feira, 17 de março de 2014

Lembro-me...



Ontem, ao final da tarde, meu amigo Daniel Abrunheiro avisou-me, por telefone, de que iria enviar-me um mail muito interessante. É que passavam, explicou, cerca de 40 anos desde aquele dia em que militares vindos das Caldas tinham feito uma espécie de ensaio geral para o dia, mais formoso de todos, 25 de Abril de 1974. A rebelião, como se sabe, foi reprimida pelo regime, circunstância que adiou a chegada da liberdade querida. O Daniel deu-me conta de que, numa crónica então publicada no jornal República por Eugénio Alves, aparecia um texto sobre a revolta de 16 de Março, inteligentemente mascarada de análise da jornada futebolística: o Porto viera a Alvalade perder com o (meu) Sporting por 2-0 e o cronista aproveitou para falar da vitória dos “da capital”, não deixando de dar ânimo aos derrotados com uma nota proverbial e aparentemente anódina – a de que perder uma batalha não significar perder a guerra. A História não demorou senão um mês e uma semana a cobri-lo de razão.

Umas três horas depois desta conversa telefónica, fui ao Jumbo de Vila Real e comprei, por um único eurinho, um curioso livro de Ferreira Fernandes, intitulado Lembro-me que… (Oficina do Livro, Lisboa, 2004). O autor (jornalista reputado, sem dúvida um dos melhores cultores do género crónica que houve-há em Portugal) inspirou-se em duas experiências literárias anteriormente levadas a cabo nos Estados Unidos (por John Brainard, com I remember) e em França (por Georges Perec, com Je me souviens) - e, no seu caso, optou por, mais ou menos de memória, recordar fragmentos do passado que pessoalmente viveu entre 1 de Janeiro e 25 de Abril de 1974.

O mais interessante, neste documento, é o facto de um texto quase exclusivamente jornalístico-factual se tornar, devido à organização narrativa e ao ritmo (anaforicamente pontuado pela expressão “Lembro-me que…” repetida umas 330 vezes), numa literatura bastante próxima da poesia. Este achado genológico tem ainda a embrulhá-lo o aconchego de um amado tema – o 25 de Abril da nossa saudade.

A última frase do livro é: “Lembro-me.” E até esta aparente incompletude (parece que o autor se esqueceu do resto da frase – lembra-se de quê?) é retoricamente bem pensada: o que ali se quer dizer é, enquanto remate lúcido e talvez dorido, que quem viveu Abril não se esquece do que significou aquela data. Não se esquece nem se pode esquecer do que significa (tem de significar, hoje e sempre) aquela data.

E digo-vos: eu também me lembro.



Ribeira de Pena, 16 de Março de 2014.

Joaquim Jorge Carvalho


terça-feira, 4 de março de 2014

Ao jovem Domingos que não pode ter morrido


A notícia atingiu-me como um pontapé estúpido, uma agressão brutal na cabeça, no coração. O "Luisinho" morreu, disseram-me subitamente, ainda a manhã de Inverno se preparava, em Coimbra, para ser o frio, a ventania e a chuva do costume.
"Luisinho" era como chamavam, em Ribeira de Pena, a um rapaz de quem tive a honra de ser professor. Eu tratava-o pelo nome que encontrei num livro de ponto de há dezoito anos: Domingos.
Era um rapaz inteligente, de bom carácter, amante da literatura, do desporto, dos amigos - e de causas nobres. Ao longo dos anos, apreciei gratamente o seu crescimento em em cidadania, o seu desenvolvimento académico, a sua maturação pessoal. Em alturas diferentes, contou-me que fizera Erasmus, que trabalhava em Vila Real, que tinha projetos. Sabia-me bem, por outro lado, o seu respeito e a sua estima por um antigo professor a envelhecer. 
Contava com ele, como conto, em geral, com os melhores jovens que vou conhecendo e que, na medida das minhas possibilidades, vou ajudando a crescer, para ajudar o futuro a ser melhor. O seu futuro e o meu. O futuro do nosso país, o futuro do mundo.
Uma doença traiçoeira roubou-o. Ao Domingos. Ao futuro.
Há tempos, li alguns textos que o Domingos escreveu, durante uma peregrinação até Santiago de Compostela. A parte dessa diarística por mim lida, tanto quanto agora recordo, não anunciava o fim da sua viagem. E a minha pobre homenagem a este amigo, tão cedo saído da nossa vila comum, é exactamente pensar nele, doravante, como alguém para sempre em demanda de outras paragens. Como se o Domingos não morresse. Como se não morrêssemos.


Coimbra, 02 de Março de 2014.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (de Alvadia, terra natal do Domingos) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.cm-rpena.pt.]