Bússola do Muito Mar

Endereço para achamento

jjorgecarvalho@hotmail.com

Número de Ondas

sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Poesia



Deixo a poesia num canto do quarto
E vou trabalhar.
Ela aparece-me por vezes em lugares inconvenientes
E ri-se do meu espanto ou indignação.
“Sai daqui”, digo-lhe então, embaraçado.
Ela ri-se e espreguiça-se, gaiata e trocista,
Sobre um rascunho de acta
Sobre uma grelha de critérios
Sobre um guardanapo de pastelaria
Sobre uma planificação séria.
“Sai tu daí”, grita, fingindo que me beija.
“Já aqui estava antes de ti”, reclamo eu.
“Parece-te”, diz ela. “Eu já aqui andava
Antes de existires.”
Lá acabamos por regressar a casa
Juntos como corpo e sombra
Filhos ambos do mesmo sol.

Ribeira de Pena, 31 de Janeiro de 2014.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.encruzilhadasliterarias.blogspot.com.]

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Exegese do coração


Gosto de imaginar Deus como um Grande Leitor. Leitor, diga-se, do imenso, absoluto, infinito, cósmico Livro dos Tempos. Imagino-O a folhear o Seu livro à hora do morno entardecer do Paraíso. Nós somos personagens - umas vezes principais, outras secundárias. Deus ri-se connosco, zanga-se, comove-se, surpreende-se, castiga-nos, perdoa-nos, perde-se na leitura e volta, uma vez por outra, atrás (divinas analepses,estas).
Quando está cansado, interrompe a leitura e dorme placidamente na sua nuvem preferida (que tem a forma do colo de minha Mãe, há meio século, no quarto humilde da nossa casa). Voltará à leitura apenas quando Lhe apetecer. 
Só no fim dos tempos Ele preencherá a ficha de leitura sobre esta narrativa. E só então saberemos, ó personagens distraídas como eu, o que o Grande Leitor achou do que fomos. Isto é: do que, nesta ilusão chamada Presente, somos.
A eternidade é talvez isso: a ideia com que o maior leitor do universo ficou, ficará de nós.

Ribeira de Pena, 28 de Janeiro de 2014.
Joaquim Jorge Carvalho

[Este texto foi originalmente publicado (com ligeiríssimas diferenças) no jornal da Escola Básica de Arco de Baúlhe,o Arco-Íris, em Julho de 2007.A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.escritoradeartes.com]

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

País pessoal em 4 andamentos


1

Portugal é o meu lugar certo:

Chega-me que haja mar

O sol por perto

As horas passando devagar.

 

2

Desamo os portugueses sem amor

Pelo essencial país

Que só algum mapa interior

Percebe e diz.

 

3

Também acordo às vezes acordo indignado

E verbero ferozmente a corrupção

Sinto-me estrangeiro, deslocado

Sem chão –

 

Mas depois o sol lá me aparece

E lembro-me de Mira, a praia Mãe –

De modo que a revolta me falece

E fico bem.

 

4

Ó Portugal ingénuo, distraído

Lírico, trapalhão, trabalhador

Burguês, valdevinos, destemido -

Ó meu amor!

 

Arco de Baúlhe, 27 de Janeiro de 2014.

Joaquim Jorge Carvalho

[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.panoramio.com.]

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Sobre ver



Há talvez dedos nesse olhar perverso
E todo o real visto é pele ardente;
Toca-se vendo e também o inverso
Na dança involuntária de quem sente.

Cabeceiras de Basto, 24 de Janeiro de 2014.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem é do maravilhoso filme A Amante do tenente francês, realizado por Karel Reisz (segundo um argumento de Harold Pinter), com interpretação de  Jeremy Irons e da eterna Meryl Streep.]

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

O riso indecente




Houve, na Idade Média, quem relacionasse o riso  com o Diabo. Excessos, ignorância, fundamentalismo enviesado, nós sabemos.
Mas talvez haja, também, a esta luz moderna e lúcida dos nossos tempos, motivos para novamente identificarmos com o velho Satã d'antanho certos esgares zigomáticos de algumas aves sem cerviz. Explico: vi hoje um excremento engravatado a rir-se despudoradamente, contentinho da silva, por ser o défice de 2013, afinal, inferior ao que a troika exigira a Portugal. Isto é, descontado o facto de muitos (como eu) terem sido espoliados dos seus salários, a coisa está a correr bem para os cínicos executivos desta merda a que chamamos Presente.
Eu, que escrupulosamente pago ao Banco, ao Senhorio, à EDP, à TMN, à PT, às Autarquias, às Finanças, aos Senhores das estradas, sou vítima de roubo violento e conspícuo - e há uns vermes sem gramática nem vergonha que se riem...
Estou oficialmente farto de vigaristas e bandidos!


Arco de Baúlhe, 24 de fevereiro de 2014.

Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.athiopia.blogspot.com.]

domingo, 19 de janeiro de 2014

O mar


Dou-vos, irmãos, este poema
Chamado
O mar.
Não é, notai, exactamente o mar
Mas vem do mar
Exacto, físico, azul ou verde,
Salgado, muito vivo, fresco,
Grande e próximo.

Preciso que acreditem nisto:
o meu poema vem do mar
E é também
(Visto com olhos de ver)
Uma espécie de mar.

Não é, como sabeis, de ninguém 
O mar
De onde trouxe este poema.
Mas o poema é vosso
De cada um
Tanto como de mim 
Que vo-lo ofereço, irmãos.

Viajai nele
Até ao vosso próprio mar
E pode ser que nos encontremos
Algures
Nos caminhos plurais do sal.





Vila Real, 18 de Janeiro de 2014.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (da minha praia de Mira) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.praia-de-mira.com.]

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Ferrovi(d)a


 
Silvam comboios sobre o meu quarto
E espantosa é a notícia, irmãos, porque
Não há aqui caminho-de-ferro
Onde pasto o Outono.
Mas, sim, comboios
Vizinhos do meu sono
Passam pela noite impessoal:
Por instantes, a minha alma
É também uma carruagem
In-quieta in-quieta  in-quieta
Entre este pobre presente
E o tempo todo.
 
Ribeira de Pena, 14 de Janeiro de 2014.
Joaquim Jorge Carvalho
[A minha imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.ruadebaixo.com.]

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Breve Idade (Ainda sobre o senhor Eusébio de Portugal)


Leva muito tempo tirar a uma árvore
Um fósforo.
Depois, havendo circunstância,
Ele acende-se
E por instantes brilha
Encanta-nos
Aquece-nos.

A saudade é um fogo outro
Contra as cinzas.

Coimbra, 06 de Janeiro de 2014.

Joaquim Jorge Carvalho

domingo, 5 de janeiro de 2014

Eusébio da Silva Carvalho (ou Ferreira)


Ao contrário de muitos conhecidos, colegas e amigos meus, não sou do Benfica. Mas sou do Eusébio. Reverente, admirador, grato, sou do Eusébio, como sou do Joaquim Agostinho, da Amália, da Sophia, do Salgueiro Maia - e de outros seres que nos ajudam a identificar como coisa colectiva, como Povo.
Bem sei que o Eusébio estava doente, que a idade não perdoa, que é a vida.
Por mim, foi um orgulho ter sido razoavelmente contemporâneo deste artista dos relvados que, ainda por cima, foi um homem bom. 
E ouso dizer que fica mais claro, em ocasiões como esta, o facto de a mortalidade ser, Deus nos perdoe, um erro.

Coimbra, 05 de Janeiro de 2013.
Joaquim Jorge Carvalho