Bússola do Muito Mar

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Número de Ondas

domingo, 31 de março de 2013

Raça Etérea

Nesta semana sem aulas, pude oferecer-me mais generosamente o prazer da leitura: José Vilhena (vários), Vargas Llosa (O Sonho do Celta), Daniel Abrunheiro (Raça Etérea).
Deixai que vos ofereça algumas linhas sobre este livro (ainda inédito) de Daniel Abrunheiro.
O escritor, que é - em Portugal - decerto o mais importante do meu tempo, inventou uma nova forma de escrever. Não é a primeira vez que o noto e digo. Genologicamente, reitero, é um objectivo problema ou um maravilhoso desafio para eventuais estudiosos, conforme os tomates da perspectiva: poesia (sobretudo Isso), crónica, narrativa, aqui e ali laivos de texto dramático misturam-se e interpenetram-se. Por dentro de cada frase ou período, explodem imagens, brotam anacolutos, serpenteiam anástrofes e hipérbatos, acendem-se hipálages. A leitura lá vai atrás dessa escrita acrobático-artística e, mal tendo tempo para respirar face a tanta novidade incontinente, corresponde-lhe como pode em sensibilidade e ourivesaria.
Tenho pena de o meu calendário ser tão pequeno para tanta exegese merecida! Pior que pena: remorsos por não replicar devida e oportunamente esta riqueza manuscrita.
Sem olhar para o livro, sou agora capaz de citar - como uma música aprendida de repente - algumas ideias, certos ritmos, singulares frases. Por exemplo: a ideia de o poeta ter de escrever para não prescrever. Ou aqueloutra de cada pessoa ser uma janela para vermos o mundo.
Olho  ainda para o (vo)lume lido e salta-me à vista uma página marcada (59.2). Sublinhei ali:
"Isto de caminhos que por aí vão - tudo vias-sacras.
É individual a visão  - como património são o visto e o invisível."
Última nota (que vai sendo em mim um inevitável estribilho): é um monumental escândalo o instituído silêncio (de aqui & de agora) que a recepção literária portuguesa consagra a Daniel Abrunheiro. Um nome, grito eu, muito maior do que esta coisa acessória e efémera chamada Presente.

Coimbra, 30 de Março de 2013.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (foto do D.A.) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.amadeubaptista.blogspot.pt.]

sexta-feira, 29 de março de 2013

Fardo


O presidente do Chipre declarou, falando sobre o futuro do seu país, que todos se tinham de preparar para suportar "o fardo".
Somos também cipriotas, como é evidente. E é este o futuro que os senhores da Europa têm para nos oferecer: um fardo. A existência humana volta a ser encarada com olhos medievais: expiamos a culpa de estarmos vivos, o erro de querermos ser felizes (ainda) na Terra, a estupidez de acalentarmos sonhos acima das nossas possibilidades.
Não se trata apenas de não haver dinheiro. Hoje, não há esperança. Não há futuro. Nada há senão este túnel longo, feio, cínico - sem luz à vista.
Vamos percebendo, aliás, que a luz é para quem tem dinheiro. E isso da esperança, do futuro e da luz é talvez dispensável. Quiçá um vício. Ora, como já se dizia no país do Estado Novo, quem não tem dinheiro não tem vícios...

Coimbra, 29 de Março de 2013.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (representando a bela Europa) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.mitologiagreca.blogspot.pt.]

Ressurreição


O sol nunca desiste de nascer
Para quem não desiste de o ver.

Coimbra, 28 de Março de 2013.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.azulverdecha.blospot.pt.]

quarta-feira, 27 de março de 2013

Casa


Subo à Praça da República, bordejo o Jardim Botânico, desço a Ladeira das Alpenduradas, estaciono ao Calhabé, tomo um café no Girassolum. Tenho tempo para matar (como se não fosse o tempo o verdadeiro matador da história toda) e leio serenamente o Diário de Coimbra. Chove sans cesse. No regresso, passo pelo Parque Manuel Braga, pela torguiana Portagem, pela Fernão de Magalhães e pela Estação Velha, subindo enfim à foz maternal que é a Rua Dr. Manuel Almeida e Sousa. A minha rua ou a rua dona de mim, porque afinal sou (para quem aqui me conhece) um rapaz daquela rua. Beijo à Mãe, duas ou três piadas sobre a economia e a idade, carro & casa.
Chove ainda. Ao longe, ouço (parece-me que ouço) os mesmos comboios de há trinta anos, chegando-partindo.
Pelas cinco e quarenta e cinco, da janela do meu quarto, testemunho um entardecer triste.
Há pouca primavera por enquanto, admito. Mas é tudo tão familiar, senhores, tão Coimbra, tão aqui que não posso deixar de me sentir bem. Em casa.

Coimbra, 26 de Março de 2013.
Joaquim Jorge Carvalho
[Foto VLC]

segunda-feira, 25 de março de 2013

O romancista, segundo Kundera


 Numa dissertação de mestrado que redigi há mais de dez anos (sintomaticamente intitulada “Álvaro Guerra, Ruy Belo e José Saramago – a importância da literatura na emancipação ética do real”), explorei com algum pormenor a distinção entre o historiador e o escritor face ao real. Pareceu-me – então como hoje – um exercício produtivo.
Relativamente ao conto, à novela e ao romance, essa distinção entre o ofício do historiador e o dos contadores literários pressupunha a comum intenção da narrativa, mas iluminava (modéstia à parte, com rigor) algumas essenciais diferenças.
Num brutal resumo, direi agora que a narrativa literária, ao contrário do que se passa com a investigação histórica, não se sente obrigada a uma obediência estrita à factualidade tout court. A literatura, enquanto arte, acrescenta subjectividade aos eventos, aos calendários, às personalidades. A reinvenção do real está, digamos assim, na sua natureza genológico-modal. E não se trata, sublinho, de mentir, mas de transcender (esteticamente) a realidade, acrescentando-lhe sentido (ou sentidos).
À época, confesso, eu não lera ainda A Arte do Romance, de Kundera. Mas experimentei - já em 2009 e agora - na leitura e releitura desta obra uma sensação de grata cumplicidade com tão brilhante escritor. Respigo, entre outros trechos luminosos, dois exemplos da lucidez kunderiana:

«Um historiador conta os acontecimentos que se passaram. […]O romance não examina  realidade, mas sim a existência. E a existência não é o que se passou, a existência é o campo das possibilidades humanas, tudo o que o homem pode vir a ser, tudo aquilo de que ele é capaz. Os romancistas elaboram o mapa da existência ao descobrirem esta ou aquela possibilidade humana. Mas, mais uma vez, existir significa “estar-no-mundo”. É preciso, portanto, compreender quer a personagem quer o seu mundo como possibilidades.» (Milan Kundera, A Arte do Romance, Lisboa, Ed. Dom Quixote, página 58.)

«O romancista […] é um explorador da existência.» (Milan Kundera, ob.cit., página 60.)
 
Sobre esta última asserção, faltará acrescentar que o leitor de romances, enquanto testemunha ocular, anda mais ou menos a par do romancista. Isto é, esta exploração não é exclusiva da escrita; também comete a leitura.


Coimbra, 25 de Março de 2013.

Joaquim Jorge Carvalho

[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.leyaonline.com.]

domingo, 24 de março de 2013

Sextilha de Presente


Alcança com teus olhos a imagem
Do vivo real à tua frente:
Olhar é uma espécie de viagem
Com início e fim no teu Presente –
Tudo te pertence de passagem
E o resto é, se houver, impertinente.

Coimbra, 23 de Março de 2013.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.cm-lisboa.pt.]

Pauta que pariu a quadra


Escrevo, como quem canta, a própria Vida
(É em si viver o magno tema)
E vejo a cada nota redigida
Que a música de ser se faz poema.

Coimbra, 23 de Março de 2013.
Joaquim Jorge Carvalho
[Foto de um outro eu, no longínquo ano de 1986.]

sexta-feira, 22 de março de 2013

Kundera e o romance como iluminação perpétua


Por acidente doméstico, voltei a ler um notável livrinho que, durante a escrita da minha disseração de doutoramento, escalpelizei vorazmente: A Arte do Romance, de Milan Kundera. Tropecei no livro, durante as arrumações que sempre antecipam as surtidas à Coimbra natal. Como hei-de explicar-vos a alegria deste reencontro? Percebeis decerto o deslumbramento que é "ouvir" alguém falar desse milagre precioso e eterno que é a literatura, sobretudo quando se trata de uma voz autorizada, lúcida, brilhante. 

[Aviso: suspeito que trarei ao Muito Mar muitas destas pérolas que, página a página, voltei agora a descobrir (o eu-que-agora-sou confirmando a importância dos trechos sublinhados pelo eu-que-antes-era, usando riscos vermelhos ou azuis, páginas dobradas, marcos geodésicos de papel).]

Encostado a Husserl, aí pela páginas 30 e seguintes, Kundera explica que sendo a razão de ser do romance «manter "o mundo da vida" sob uma iluminação perpétua e proteger-nos contra o "esquecimento do ser", a sua existência será hoje mais necessária que nunca».
E acrescenta:
«O espírito do romance é o espírito da complexidade. Cada romance diz ao leitor: "As coisas são mais complicadas do que tu pensas." [...]»
A visão do autor de A Insustentável Leveza do Ser não é, contudo, optimista:
«É a verdade eterna do romance mas que cada vez se faz menos ouvir na algazarra das respostas simples e rápidas que precedem a pergunta e a excluem.»
Amen, digo eu, suspirando.

Escrever romances é uma arte. Escrever sobre escrever romances é outra arte. Ler o que dizem os bons artistas é um prazer.

Coimbra, 21 de Março de 2013.
Joaquim Jorge Carvalho
[a foto de Kundera foi colhida, com a devida vénia, em http://www.armonte.wordpress.com.]

quarta-feira, 20 de março de 2013

Escritura de herdeiros


À curva, antes do poema, a casa de xisto,
Toda fechada sobre si
(uma casta casa com cara de nenhuns amigos).

A casa (digo) só paredes, antes do poema
Sem outro sinal de gente na casa senão a falta
De lume, de gente.

A casa de xisto, antes do poema, desabitada
E inerte como pobre pedra perdida na serra
Ao fero frio.

A pedra (o xisto) antes da casa, antes do poema
E um espaço interior com gente antes de não
Haver gente.

A casa que era, antes da casa que é
Antes do poema sobre o xisto que um dia se tornou
Casa de gente.

Até que o poema (digo) herda a casa
E entra enfim mansamente nela
Como se fosse lume.

Arco de Baúlhe, 14 de Março de 2013.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (casa de xisto na aldeia de Cando - Arouca) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.geolocation.ws. O poema, esse, é de fabrico próprio, mas não teria nascido se o Daniel Abrunheiro não mo tivesse sugerido.]

terça-feira, 19 de março de 2013

Hallam Foe



Começa tudo outra vez no Jumbo, na zona de devedês (grafia minha) em promoção. Compro por um euro e noventa cêntimos um filme de David Mackenzie, intitulado Hallam Foe (de 2007). Razão confessada: o rapaz na capa parece-se muito com o do protagonista de um maravilhoso filme de Stephen Daldry, Billy Elliot. Confirmo, já em, casa, que se trata do mesmo actor – Jamie Dell.
Enquanto a MP, que é mais resistente do que eu, acompanha na sala as manigâncias do Eurogrupo na sua tarefa urgente de dar cabo do Chipre, ponho-me a ver a história de um rapaz que, como o Billy do filme de Daldry, é órfão e (ainda) não conseguiu superar a partida da amada progenitora.
Hallam sobrevive como um náufrago, agarrando-se a tábuas frágeis e mínimas: memórias, observação do quotidiano, busca (incerta e talvez louca) de verdade e de justiça. Entretanto, odeia e ama. Ataca e foge. Aparece e esconde-se.
A sua principal característica (e a que à minha particular sensibilidade mais cativa) é talvez o ofício voyeur que ele desempenha com argúcia e, na maior parte dos casos, admirável discrição. Foi por causa deste filme que me ocorreu uma sextilha sobre um Simão moderno (fugido à decência romântica) que olha, sem vergonha da própria curiosidade, para Teresa, nela divisando alguma nudez voluntariamente revelada…
Tirando uma certa dimensão demencial (que compreende até a mental incursão pelo incesto), a história deste filme é simples e encantadora, como acontece com a maior parte das boas histórias. No final, a provisória amante do rapaz (interpretada por uma deliciosa Sophia Myles), mais velha que ele uns dez anos, explica-lhe carinhosamente o fim do romance. Pede-lhe, sorrindo, que a volte a procurar uns cinco anos depois. Hallam pergunta-lhe se, nessa altura, continuará linda como nesse momento.
Ela responde: “I hope so.”
E o rapaz acredita: “You most certainly will be…”
Entretanto, fora do mundo maravilhoso da arte, alguns pançudos davam cabo do Chipre – mas essa é outra narrativa.

Ribeira de Pena, 18 de Março de 2013.
Joaquim Jorge Carvalho
[As duas imagens foram colhidas, com a devida vénia, respectivamente, em http://www.imdb.com e http://www.scottishscreen.com.]

O reverso da gratidão


Partindo do princípio (um pouco cómico, convenhamos) de que os nossos políticos têm consciência e coração, deve haver – julgo eu – muita gente da classe a sofrer de insónias e remorsos.
Espanta-me sempre a facilidade como alguns destes profissionais das eleições desvalorizam publicamente o trabalho e o valor dos professores. Bem sei que muitos deles, desde o aviário jotinha ao poleiro sénior, se habituaram a obter certificados e cargos sem esse pormenor incómodo de verdadeiramente terem de estudar. (Vergonha para alguns indignos professores e instituições que, por razões de mercearia pessoal ou corporativa, tão tristemente se venderam…)
Mas há decerto quem, na classe política, tenha estudado a sério. Quem reconheça num certo professor a importância que teve na iluminação da própria vida. Quem perceba em certo mestre (algures pelo ensino básico, ou secundário, ou universitário) o mérito, a generosidade, o heroísmo, a dedicação…
Como conseguirão alguns políticos dormir depois de, com as piores palavras ou os piores silêncios, com os mais vis actos ou as mais vis omissões, terem contribuído para a degradação da imagem e estatuto dos professores? Como?


Ribeira de Pena, 19 de Março de 2013.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www. impalastrunk.blogspot.pt.]

In-dignidade


Não era preciso vermos (mais) esta vergonha ciprioticida para confirmar a mediocridade, ignorância e cinismo da decadente Europa. Mas nunca são de mais os contributos para que a verdade brilhe, a salvo de quaisquer dúvidas que ainda houvesse…
Eu cá tenho por seguro que o capitalismo selvagem não é (não pode ser) o fim da História. E que, como o fascismo, o nazismo, o comunismo, é apenas mais uma versão de uma visão errada e injusta do mundo. Uma visão, digo eu, divorciada das pessoas, que despreza a liberdade de indivíduos e comunidades, que troca sonhos por especulação financeira, que esmaga a maioria da população em favor de um grupo selecto de panças.
Haverá, espero, melhor tempo depois deste pobre tempo.
Nos nossos dias, a indignação passou a estado de espírito habitual dos homens (ainda) dignos da condição humana.

Ribeira de Pena, 18 de Março de 2013.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.geografiaem360graus.blogspot.pt.]

segunda-feira, 18 de março de 2013

Simão espreitando Teresa e vice-versa (Sextilha moderadamente platónica)


São as vidas de outros os espelhos
Das existências próprias sucedendo:
Teresa afasta um pouco os seus joelhos
Simão sente de si outro crescendo.
Ela soma fogo ao lume brando
Ele faz, sem fazer, amor olhando.

Ribeira de Pena, 18 de Março de 2013.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (de Testemunha de um Crime, filme de Brian De Palma) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.ateladoaventurar.blogspot.pt.]

domingo, 17 de março de 2013

Sem rede


A era dos telemóveis contribuiu (supostamente) para o reforço da comunicação entre os seres humanos. Mas acontece-nos, por vezes, este incómodo moderno de ficarmos, de um momento para o outro, "sem rede". Sem darmos por tal, pode suceder que continuemos a falar, crendo que a comunicação se está concretizando. Ao fim de alguns segundos (ou até de muitos segundos), percebemos o logro e substituímos a fala pelo silêncio embaraçado. Quiçá digamos para os nossos botões: "Estava a falar para o boneco." ("Para o boneco" significa, claro, falarmos para ninguém. Ou significa, numa outra perspectiva, falarmos sem que ninguém  nos escute.)
Sucedeu-me isto hoje mesmo, durante uma conversa divertida com o Daniel Abrunheiro. Estabelecida a religação, rimo-nos da situação e eu saí-me com esta:
- Estava a falar sozinho, sem ninguém a ouvir-me. É, em parte, a história da minha vida...
Rimo-nos outra vez, cúmplices de uma cumplicidade de quarenta anos. Mas, penso agora, havia (há) nesta casual frase, ao telemóvel, alguma tristeza metonímica. Tristeza séria.
Fala-se, escreve-se - muitas vezes para nada. Por, creio eu, falta de rede.

Ribeira de Pena, 16 de Março de 2013.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.mghorta-osa.blogspot.pt.]

segunda-feira, 11 de março de 2013

Versos à roda de Thoreau & Camões


Parece menos finito o tempo quando há tempo.

Assim andava Pedro na caça em vez
De, na cama ou nos jardins, amar Inês.

Temei ora vós de Pedro a igual dor
Se muito adiais o urgente amor

E não chega muito amar (ou força, ou jeito)
Que mais fica por fazer que o amor feito.

Ribeira de Pena, 11 de Março de 2013.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (túmulo de D. Pedro) foi colhida, com a devida vénia, em http://www.lobodaestepe.com.]

sábado, 9 de março de 2013

Esperar o Verão, se houver

Levanto-me e sinto nos ossos o mesmo frio de ontem. Espreito a rua fronteira: chuva.
Cansa esta meteorologia austera. Desejo profundamente o sol. Mais: desejo profundamente o Verão, esse devir que já mereço, talvez, após tanta tristeza calendária.
Tenho muitas saudades das manhãs muito claras. Do calor excessivo que nos desperta as sedes e as gulas de víveres e amores. Da música alegre e das mangas arregaçadas. Dos vestidos leves e curtos que, em hipermercados e centros comerciais, sugerem nudezes secretas e próximas. Das múltiplas cores que os dias oferecem, como feiras gaiteiras, para ver e ser. Tenho muitas saudades do Verão.
Tem sido um tempo difícil, este tempo anterior ao Sol.
A minha biografia está sujeita aos ditames indignos da mercearia. Sou, como tantos contemporâneos amáveis, obrigado a aturar, a troco de euros funcionários, a mediocridade governante; os maus modos dos poderosos contextuais (que me exigem obediência ou recato); a má gramática de quem (apesar desse furúnculo vergonhoso) fala grosso e demasiado para cima de mim; a perda de esperança que testemunho nos cafés, nas ruas, nas escolas, nas casas dos portugueses; o desconforto de (ter de) conviver com merda em vez de inteligência e sensibilidade; a pena de os meus alunos terem futuro sem Verão; a dor de a cultura e a arte estarem (por toda a parte, meu Deus, por toda a parte!) às mãos de compadrios partidários e paroquiais; a tortura de o Inverno ter talvez aqui ficado para sempre.

O Verão, senhores. Estou só à espera do Verão.


Ribeira de Pena, 09 de Março de 2013.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem (da formosa série "Verão Azul") foi colhida - com a devida vénia - em http://www.portugalseries.net.]

terça-feira, 5 de março de 2013

Nós no progresso

No mui lindo Verão de 1983, eu trabalhei durante dois meses na Fábrica Estaco, em Coimbra. O dinheiro ganho serviu-me para comprar um Austin Mini e alguma livraria barata. Isto foi há muitos séculos, claro. Entretanto, morreu a Fábrica e esse Verão tão lindo.
Lembrei-me agora de que, por essa altura, na Estaco, havia uma série de trabalhadores italianos que por ali andavam, amáveis e ruidosos, orientando a instalação de novas e sofisticadas máquinas industriais. O Borges (um operário que tinha o que, então, me parecia muita idade, sendo que essa idade não ultrapassaria os quarenta anos!), olhando para os estrangeiros, franziu o seu bigode d’Ançã e disse para o pessoal da noite:
- Aquilo faz para aí o trabalho de uns vinte homens. Qualquer dia não temos trabalho…
Sucede que o Borges tinha razão.
Não me parece pacífica a ideia, vista daqui da varanda do século XXI, de que as novas tecnologias são boas para a humanidade. A fome persiste. Muitos não têm casa. A guerra desenvolve-se mais depressa que a paz. O Tempo, em vez de crescer, morre de desgaste rápido.
Vale a pena, julgo eu, ó contemporâneos, discutir este assunto…

Arco de Baúlhe, 05 de Março de 2013.
Joaquim Jorge Carvalho
[A imagem foi colhida, com a devida vénia, em http://www.lugaresesquecidos.com.]

sábado, 2 de março de 2013

Basta





Percorri, hoje, ruas da eterna Coimbra, junto a muitos contemporâneos cúmplices, uns desconhecidos, outros conhecidos, outros muito próximos, cantando Zeca vila morena, gritando que está na hora, que o povo unido, que onde não há pão não há sossego, que basta.
Bem sei que, apesar de tudo, éramos todos, naquela união momentânea, uma espécie de ilhas, quero dizer: cérebros e corações diferentes, gente com opiniões díspares sobre diagnóstico e receitas. Sei bem. Estávamos nesse lugar a que poderíamos chamar, na retórica de Régio, o lugar de apenas sabermos que não vamos por aí. De não sabermos ainda, talvez, por onde vamos, para onde vamos. Mas, lembro eu, a revolução de Abril também foi assim, não foi?, com toda a gente a cantar a mesma gaivota e a votar em quinze partidos diferentes. Sabe-se lá, digo eu, se não está por aí a nascer outra madrugada limpa que dure mais dez ou quinze anos lindos...
Um senhor de uns cinquenta anos lembrava a um jovem (talvez familiar) que "os gajos foram para o governo com um programa e estão a fazer tudo ao contrário". Foi, para mim, o discurso mais lúcido da tarde. Esse e um outro que, sob a forma de canção, ajudei a interpretar num coro emocionante, ali pela rua Ferreira Borges, com a MP, a VL, a Graça, a Isabel, a Guida, a Mité, milhares de avulsas vozes: "O povo é quem mais ordena / Dentro de ti ó cidade!"
Anoiteceu, como tinha de ser. Doem-me agora os braços de ter carregado, sempre bem alto, aquela indignação com que acordo e adormeço há muito tempo: Basta.
E, deixai que vo-lo diga, soa-me muito bem, neste contexto d'hoje, essa honesta palavra: Basta! Basta! Basta!

Coimbra, 02 de Março de 2013.
Joaquim Jorge Carvalho
[Fotos VL.]